Os hazaras, povo esquecido do Afeganistão

 

Os hazaras, povo esquecido do Afeganistão  

 
No coração do Afeganistão, existe um espaço vazio, uma ausência sentida, no local onde outrora se erguiam os colossais budas de Bamian. Em Março de 2001, os talibãs dispararam contra as estátuas durante dias a fio, rechearam-nas de explosivos que, por fim, foram detonados.
 
Os budas tinham contemplado Bamian durante cerca de 1.500 anos. Comerciantes e missionários de diversas confissões calcorrearam este trilho da Rota da Seda. Por ali passaram emissários de diversos impérios (mongol, sefévida, britânico, soviético), deixando frequentemente atrás de si um rasto sangrento. Um país chamado Afeganistão tomou forma; regimes ganharam vida e desmoronaram-se.
As estátuas a tudo sobreviveram. Contudo, para os talibãs, os budas eram simplesmente ídolos não-islâmicos, heresias esculpidas em pedra. A destruição das estátuas foi uma afirmação piedosa do seu género de fé, imposta à história e à cultura. Foi também uma afirmação de poder sobre o povo que vivia sob o olhar dos budas: os hazaras, habitantes de uma região isolada das montanhas centrais do Afeganistão, conhecida como Hazarajat – pátria de origem, embora de escolha não inteiramente livre.
 
Representando cerca de um quinto da população do Afeganistão, há muito que os hazaras são considerados forasteiros. São maioritariamente muçulmanos xiitas num país de maioria esmagadora muçulmana sunita. Têm fama de trabalhadores, mas reservam-lhes os empregos mais indesejáveis. As suas feições asiáticas marginalizaram-nos numa casta inferior e a sua alegada inferioridade é tão frequentemente recordada que alguns a aceitam como verídica. Os talibãs no poder – sobretudo sunitas fundamentalistas, da etnia pastum – consideravam os hazaras infiéis. Não tinham o aspecto morfológico que um afegão deveria ter, nem prestavam culto como um muçulmano deveria prestar. Referindo-se aos grupos étnicos não-pastum do Afeganistão, um talibã afirmou: “Tajiques para o Tajiquistão, usbeques para o Usbequistão e hazaras para o goristão”, o cemitério. E, de facto, assim que os budas foram derrubados, as forças talibãs puseram cerco a Hazarajat, incendiando aldeias para tornar a região inabitável. No princípio do Outono, as gentes de Hazarajat interrogavam--se se conseguiriam sobreviver ao Inverno.
 
Chegou então o dia 11 de Setembro de 2001, tragédia noutras paragens que pareceu trazer consigo a salvação para o povo hazara. Seis anos volvidos sobre a queda dos talibãs, aindarestam cicatrizes na pátria dos hazaras, mas existe uma sensação de viabilidade, impensável há uma década. Actualmente, a região é uma das mais seguras do Afeganistão e está em grande parte livre dos campos de papoila que prevalecem noutras regiões e alimentam o tráfico de droga. Uma nova ordem política reina em Cabul, sede do governo central do presidente Hamid Karzai.
 
Os hazaras têm agora acesso às universidades, a empregos na função pública e outras vias de promoção que há muito lhes eram negadas. Um dos vice-presidentes do país é hazara, tal como o principal arregimentador de votos no parlamento nacional, e uma hazara tornou-se a primeira e única mulher a ocupar o cargo de governador no país. Numa altura em que o país faz esforços para se reconstruir após décadas de guerra civil, muitos acreditam que Hazarajat poderia ser um modelo do que é possível, não só para os hazaras, mas para todos os afegãos. No entanto, este optimismo é matizado por recordações do passado e frustrações do presente, causadas por estradas não construídas, pela ressurgência dos talibãs e por vagas crescentes de extremismo sunita.
 
Neste momento, está em curso um projecto destinado a recolher milhares de fragmentos de pedra para reconstruir os budas.

Fonte: National Geographic